Comunicação Oral Curta

03/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC12.2 - Decolonizar teorias, práticas e saberes: Movimentos sociais e populares por Soberania Sanitária em territórios da América Latina e do Caribe

46149 - BEM VIVER E POVOS INDÍGENAS: ANÁLISE CRÍTICA A PARTIR DOS CASOS DE SAÚDE MENTAL ENTRE INDÍGENAS DO BAIXO AMAZONAS - PARÁ
RUI MASSATO HARAYAMA - UFOPA/ UFSC


Apresentação/Introdução
A discussão sobre saúde mental entre povos indígenas funda a antropologia médica e é parte da história da antropologia. Nos estudos de William Rivers, as enfermidades e queixas que não apresentassem causalidade conhecida no sistema médico europeu passaram a ser interpretadas como produtos de sistemas lógicos, mas de caráter religioso. Como consequência, a racionalidade dos povos não-europeus passou a ser definida a partir de categorias como religião e, posteriormente, como cultura. A estratégia epistemológica de incorporar elementos incompreensíveis à causalidade biomédica a partir da gramática da cultura tornou-se um padrão, inclusive com a inserção das ‘Síndromes ligadas à cultura’ no DSM IV, em 1994. Observa-se, nesse movimento das ideias, a reiteração de um pensamento racional e científico ocidental frente a outro exótico e cultural do não-ocidente. No contexto latino-americano, queixas como susto e doenças dos nervos passaram a ser tratadas como doenças culturais e de pouca intervenção de assistência à saúde, para além das medidas farmacológicas para a contenção de crises. Como contraponto, as teorias decoloniais e a discussão das epistemologias do sul passaram a defender a categoria do bem-viver como uma teoria que reitera o caráter de luta coletiva e uma epistemologia que indissocia o indivíduo, o coletivo e o meio ambiente entre povos indígenas andinos. Entretanto, quando essa teoria é trazida para as terras baixas amazônicas e passa a ser utilizada por diferentes atores não-indígenas, como pelos serviços de saúde, acaba retirando o contexto pragmático de mobilização social e luta indígena de onde surgem, e passa por um processo de deslize epistemológico e o bem-viver passa a reificar uma ideia homogeneizadora e ocidental de comunidade, coletividade, reciprocidade e solidariedade. E é nesse contexto que analisamos queixas e perturbações de saúde de indígenas que moram em aldeias localizadas nos Rios Trombetas e Mapuera (RTM).

Objetivos
Discutir a categoria bem-viver a partir da pesquisa etnográfica e documental. Analisar o itinerário terapêutico de indígenas com queixas caracterizadas como problemas de ordem mental.


Metodologia
Etnografia realizada em aldeias e zona urbana do município de Oriximiná, Pará, no período de Agosto 2022 - Agosto 2023.

Resultados e discussão
O grupo indígena foi contactado pelos missionários norte-americanos no final da década de 1940, com a promessa de salvação da alma e a oferta de produtos dos brancos, como medicamentos. Mas em troca deveriam abandonar as práticas de feitiçaria e o seu conceito de alma instável. Após serem aldeados na Guiana Inglesa e obrigados a morarem juntos em grandes aldeias interétnicas, a partir de 1970 passaram a retornar para a região RTM. Atualmente nas aldeias é comum observar a presença de diferentes etnias como Wai Wai, Xerew, Tiriyó, Mawayana, Katwena, e o convívio interpessoal e interétnico são apresentados como causas de queixas e perigos. Os relatos apontam que práticas de feitiçaria e contra-feitiçaria eram recorrentes antes da conversão, e eram baseados em ‘soprar’ determinadas palavras em objetos e na rememoração dos desafeto, prática descontinuada após o encontro com a ‘palavra correta’ de Jesus que retirou os sentimentos de tristeza e medo, tornando-os felizes. Os dados demonstram que a afirmação da felicidade, que ocorre nas conversas cotidianas e nos cultos semanais, indica que o estado de tristeza é um indicador perigoso porque pode ser resultado de feitiços e desencadear acusações a partir de relações étnicas e de parentesco e, no limite, desencadear processos de retorno à época da não conversão. E por isso que dores de cabeça, epilepsia e surtos psicóticos são prioritariamente tratados com medicamentos alopáticos obtidos junto ao sistema público ou particular. Há preferência pelo uso de medicamentos alopáticos, já que o tratamento correto para a cura de feitiços seria o contra-feitiço, que provocaria uma sequência de fraqueza, tristeza e a morte do seu demandante; a outra estratégia de cura sendo a mudança de local de moradia ou fundação de nova aldeia, longe da área de influência do feiticeiro, mas também distante dos equipamentos de saúde. Para os profissionais de saúde, a presença de pacientes com queixas de dores de cabeça é resultado da ‘perda’ do conhecimento médico tradicional decorrente da conversão. E que poderiam ser dirimidos com estratégias de fortalecimento da cultura tradicional e das práticas de bem-viver, que no âmbito institucional da saúde reafirmam ideias de coletividade e solidariedade que não estão presentes nos itinerários acompanhados e nos relatos das práticas de cuidado presentes no passado.

Conclusões/Considerações finais
Esse desencontro epistemológico demonstra que a implementação de práticas decoloniais de saúde precisa observar o contexto histórico e social dos grupos indígenas com suas concepções e práticas que compõem arranjos de elementos considerados tradicionais com não-tradicionais, evitando homogeneizar as diversas vivências dentro de categorias como do bem-viver.