02/11/2023 - 13:10 - 14:40 CO16.3 - Produção do cuidado, gênero e intersecionalidade |
47094 - “VOCÊ PODE COLOCAR A MÃO LÁ SIM”: AUTONOMIA E AUTOCONHECIMENTO NA PRÁTICA DO AUTOEXAME GINECOLÓGICO ALINE ÂNGELA VICTORIA RIBEIRO - UNICAMP
Apresentação/Introdução Há cerca de duas décadas, na América Latina, uma série de categorias passarem a ser utilizadas para se referir a uma série de discursos e práticas que têm como foco a autonomia corporal e em saúde para mulheres (e, em alguns casos, para demais pessoas com vulva). Trata-se de uma polissemia de categorias construídas a partir da palavra “ginecologia”, sendo as mais comuns “ginecologia autônoma” e “ginecologia natural”, às quais agrego sob o termo “ginecologias críticas”. No Brasil atual, o campo das ginecologias críticas é constituído por redes informais de diferentes atores, entre ativistas, profissionais (sobretudo das áreas da saúde) e pessoas “leigas”. Alguns dos princípios das ginecologias críticas são a filosofia faça-você-mesma, o ativismo por saúde sexual e reprodutiva, a disseminação de informações e o compartilhamento de experiências. Uma das práticas centrais nesse sentido é o autoexame ginecológico (ou autoexame vulvovaginal), ensinado e aprendido por meio de rodas de conversa, oficinas e materiais como fanzines. O autoexame, que surgiu nos grupos de autoajuda feminista dos anos 70, é realizado com o auxílio de um espéculo e um espelho, visando estimular a autonomia e o autoconhecimento.
Objetivos O objetivo deste trabalho é discutir o autoexame ginecológico no contexto do campo das ginecologias críticas, analisando como essa prática tem sido realizada e quais são seus significados. Quais são as implicações dessa prática de autocuidado? De quais formas ela se relaciona com o conhecimento médico-científico “convencional”?
Metodologia A metodologia é qualitativa e eminentemente etnográfica. O autoexame ginecológico é discutido a partir da análise de materiais que circulam no campo da pesquisa, sobretudo fanzines, que abordam essa prática. Inspiro-me na perspectiva da etnografia de documentos, considerando esses materiais como artefatos culturais, na medida em que não só falam sobre algo, mas também produzem efeitos, são instrumentos e meios de mobilização e produção de demandas, tensionamentos e saberes.
Resultados e discussão Nos materiais analisados, o autoexame ginecológico é apresentado como uma prática de extrema importância para o desenvolvimento do autoconhecimento e do autocuidado, permitindo também que se exerça maior protagonismo na gestão da própria saúde. Além de ensinar o passo a passo do autoexame, os materiais geralmente compartilham detalhes sobre anatomia e fisiologia dos órgãos reprodutivos, além de abordar sinais que poderiam indicar questões de saúde. A autonomia seria um meio para “retomar” a agência sobre a própria saúde, transformando, no processo, não só a relação com o próprio corpo mas também com uma forma de conhecimento que, sob a perspectiva de uma Ginecologia “convencional”, ficaria restrito ao profissional de saúde (sobretudo à pessoa médica). Com autoconhecimento e a apropriação do conhecimento médico-científico ginecológico seria possível, por exemplo, buscar subverter a relação médico-paciente como uma relação de poder desigual na qual a paciente/usuária é colocada na posição de objeto sobre o qual as intervenções são realizadas. Nesse sentido, ter acesso a boas informações e conhecer o seu “normal” em relação à saúde seriam ferramentas transformadoras, adquiridas a partir do autoexame. Através do acesso a esses conhecimentos e saberes seria possível tomar decisões de modo consciente sobre o próprio corpo e a própria saúde. Outra ferramenta importante é o espéculo, instrumento que foi criado no contexto de desenvolvimento da Ginecologia como especialidade médica a partir de sua relação com o colonialismo e o racismo. Entretanto, apesar desse histórico e de ser uma ferramenta costumeiramente utilizada pelas pessoas médicas nos exames ginecológicos de rotina, esse instrumento é apresentado nos materiais, no contexto do autoexame, como uma tecnologia feminista. É, então, apropriado pelo ativismo das ginecologias críticas e ressignificado como um instrumento que permite acessar o conhecimento sobre o próprio corpo.
Conclusões/Considerações finais O autoexame ginecológico é um dos pilares dos ativismos de ginecologia crítica. É também uma prática que tensiona certos preceitos estabelecidos associados a um sistema de práticas médicas “convencionais” e estabelecidas. No ponto de vista adotado nos materiais analisados, a autonomia constitui um tensionamento importante quando pensamos sobre o modo como o sistema médico ou a Medicina “convencional” opera. No entanto, não se trata de uma recusa desse sistema ou mesmo do conhecimento médico-científico. No material, fica claro que o autoexame não deve substituir consultas médicas nem visa dispensar aconselhamento profissional. Há a ressignificação de determinados saberes, práticas e objetos, reapropriados e praticados sob uma perspectiva mais alinhada aos feministas, ou seja, que visa tornar acessíveis informações importantes, com base na autonomia e no autoconhecimento. Nessa perspectiva, o autoexame ginecológico pode ser compreendido como um modo de retomar o protagonismo em relação à própria saúde.
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