Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC26.2 - Tornar-se mulheres e mães em contextos de situação de rua: quais os reais dilemas?

46073 - O ENCONTRO COM SAFIRA E A PRODUÇÃO DO CUIDADO POSSÍVEL: RELATO SOBRE UMA PESQUISA ETNOGRÁFICA EM CENA DE USO
PRISCILLA VICTÓRIA RODRIGUES FRAGA - INSTITUTO RENÉ RACHOU | FIOCRUZ MINAS, CELINA MARIA MODENA - INSTITUTO RENÉ RACHOU | FIOCRUZ MINAS, PALOMA FERREIRA COELHO SILVA - INSTITUTO RENÉ RACHOU | FIOCRUZ MINAS


Apresentação/Introdução
Aa pessoas em situação de rua (PSR) vivem em permanente estado de vulnerabilidade, seja por não ter documentos, não possuir moradia, dinheiro, emprego fixo, falta de acesso à educação e por encontrar dificuldades até mesmo para receber cuidados em saúde (SOTERO, 2011).
O processo de exclusão social afeta diretamente à PSR, expondo essa população a sobrepostas violações de direitos. A representação do Estado pode acontecer como violência institucional ou negativas de acesso por julgamentos morais que desconsideram sua realidade de vida.
O presente relato apresenta parte da pesquisa “Tá Normal Tá Normal A saúde chegou: Etnografia da atuação do Consultório na Rua de Belo Horizonte nas Cenas de Uso”, a partir dos encontros com Safira, usuária acompanhada da equipe Consultório na Rua (CnaR), e as estratégias desenvolvidas para efetivação do seu cuidado em saúde.

Objetivos
Pretende-se analisar o processo de exclusão social vivenciado pela PSR e a construção do cuidado possível pelo CnaR a partir do acompanhamento de uma usuária durante a pesquisa.

Metodologia
Trata-se de pesquisa qualitativa desenvolvida por método etnográfico considerando que permite ao pesquisador “captar determinados aspectos da dinâmica urbana que passariam desapercebidos se enquadrados exclusivamente pelo enfoque das visões macro e dos grandes números” (MAGNANI, 2002). Durante o percurso etnográfico foram registradas no diário de campo os fatos, cenários, falas, percepções, recorrências, desconfortos, observações, questionamentos pessoais, tornando-se fundamental para que as impressões da pesquisadora fossem arquivadas.

Resultados e discussão
Safira se tornou importante interlocutora e proporcionou maior familiarização e leitura do cenário da pesquisa, trazendo informações sobre a dinâmica territorial, sobre ser mulher e viver em situação de rua em uma cena de uso de drogas. No primeiro encontro ela havia terminado de fazer o uso de crack e estava resistente ao acompanhamento da equipe CnaR, mas após diálogo e negociações aceitou se deslocar ao Centro de Saúde para realização de pré-natal. Após o pré-natal foi direcionada para avaliação médica por sintomas de Covid-19, mas Safira sinalizou que não desejava mais consultas naquele dia, e mesmo após insistência da equipe recusou.
Em outro encontro com Safira no território percebo ela bem mais vitalizada e andava com a mão nas costas empurrando a barriga para frente, acredito que como forma de mostrar que estava grávida. Acompanhada de uma colega pediu que a equipe afirmasse publicamente que estava fazendo pré-natal e brincou: “Mostra meu cartão de pré-natal. Eu faço pré-natal direitinho minha filha!”. Fazer o pré-natal era como se fosse um atestado de que estava fazendo parte ou cumprindo esse “rito social” da forma esperada socialmente, como ela mesma disse: “não sou qualquer uma”.
Sua fala remete à concepção de Filho e Moura (1998) sobre a humilhação social como modalidade de angústia, resultante do impacto traumático da desigualdade de classes. A humilhação, para os pobres (aqui situo à PSR), é uma realidade sentida no cotidiano como iminente, sempre à espreita, sendo que o sentimento de não possuir direitos, de parecer desprezível e repugnante lhes é imposto, como se fossem seres que ninguém vê.
Corpos como o de Safira têm sua cidadania negada e são colocados socialmente num lugar de nenhum valor. Durante os meses de campo etnográfico, Safira relatou diversas violências do tráfico, da segurança pública e até mesmo institucional a partir do abrigamento compulsório de seu bebê baseado na “justificativa” que tratava-se de mulher em situação de rua e usuária de drogas. Destaca-se, que grande parte dessas violências foram narradas com naturalidade e como algo cotidiano.


Conclusões/Considerações finais
A etnografia permitiu captar a percepção das interações sociais no desenrolar da vida social, o que colocou a pesquisadora em contato com a cena quando ela se produz, possibilitando captar particularidades desses locais e compreender a dinâmica dos territórios e dos sujeitos (usuários do serviço e trabalhadores) para além dos estereótipos.
A atuação do CnaR numa lógica de baixa exigência (diretriz do Ministério da Saúde para os serviços que atuam com a população em situação de rua e no campo de álcool e drogas), sem colocar sobre o outro uma expectativa de um modelo ideal, com escuta e vínculo, possibilitou adesão o cuidado em saúde, respeitando os limites individuais de Safira e a equipe seguiu arquitetando junto dela, cotidianamente, novas possibilidades de uma vida mais saudável, pois a interação do cuidado só se efetiva quando o usuário está na centralidade desse processo.
Referências
FILHO G. MOURA J. Humilhação social - um problema político em psicologia. Psicologia USP, v. 9, p. 11–67, 1998.
MAGNANI JGC. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 17, n. 49, p. 11–29, jun. 2002.
SOTERO M. Vulnerabilidade e vulneração: população de rua, uma questão ética. Revista Bioética, v. 19, n. 3, 27 dez. 2011.