Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC20.1 - Políticas da reprodução e governança reprodutiva

47726 - "A CULPA É DA MÃE": A CULPABILIZAÇÃO INDIVIDUAL POR VIOLÊNCIAS SISTÊMICAS E ESTRUTURAIS.
STEFANNY PAULA PEREIRA DA SILVA - UFPE


Contextualização
Esse trabalho foi sendo tecido a partir da minha experiência de conclusão de curso como estagiária de psicologia na Atenção Básica em Saúde (ABS), através do NASF.

Descrição
Durante a experiência foi me chamando muito a atenção como era percebido por profissionais, inclusive da psicologia, as situações de saúde de crianças e como era frequente a culpabilização da mãe por desenrolares que, a meu ver, diziam muito de uma desassistência do Estado e da operacionalização de uma política de morte, que não só opera os mecanismos de fazer morrer mas nos esgota nas batalhas cotidianas pelo básico necessário para as sobrevivências cotidianas.

Período de Realização
Nov 2021 a Nov e 2022.

Objetivos
O objetivo é compreender como os sentidos sobre gênero construídos por profissionais da ABS podem alicerçar práticas de assistência em saúde que reproduzem violências, mesmo dentro da cisgeneridade.

Resultados
Como resultado vou trazer uma situação da experiência de estágio. Porém, antes vale pontuar que diversas situações diferentes desaguaram no mesmo desfecho desta que irei contar, mas devido a limitação de caracteres vou trazer apenas uma das situações.
Atendemos uma criança que estava em acompanhamento por pedido da nutricionista, minha preceptora disse: “É um caso de reeducação alimentar, estamos mais no lugar de orientação da mãe”. Como se tratava de orientação e tanto a mãe como a criança consentiram verbalmente e percebemos não haver incômodo, fiquei na sala junto a preceptora. A criança tinha 9 anos e estava dentro do que a medicina ocidental marca como obesidade, com algumas alterações no exame de sangue e também com algumas questões no rendimento escolar. Quando perguntada sobre como estava a dieta da criança, a mãe respondeu: "Ah doutora, do mesmo jeito! Mudou foi nada. Eu coloco maçã na lancheira dele e a maçã volta inteira. Coloco feijão e arroz e ele não come. Só quer comer biscoito". A conversa se desenrolou sobre o porquê da mãe ainda comprar biscoito na feira, porque ela mesma comia biscoito, até que uma frase da conversa me saltou: "Ele precisa mudar a alimentação, mãe, veja os exames dele. Ele pode ter um AVC e aí, a culpa vai ser de quem?".
"A culpa é de quem?".
Para finalizar essa seção gostaria de colocar que meu objetivo não questionar a relevância da medicina ocidental ou o alerta dado para uma criança que chega aos parâmetros estabelecidos como obesidade. Também espero que quem me lê não entenda que meu movimento é de desresponsabilizar completamente pessoas por suas ações no mundo, especialmente quando nossas ações impactam na vida de quem ainda não foi dada a autonomia de decidir completamente por si, como no caso de crianças, não é isso, o que quero é compartilhar outras reflexões sobre como agimos em nossa prática psi. Sigamos.

Aprendizados
Com essa experiência pude aprender a importância de um exercício implicado na psicologia, de que nossas ações para promover saúde não podem se construir em cima de boas intenções, é necessário que se construa em cima de bases teóricas e epistemológicas críticas e diversas, por diversidade entendo bases que não estejam unicamente fundamentadas no conhecimento euro-ocidental. Para que boas intenções reverberam em ações capazes de promover saúde e cuidado é essencial que tenhamos consciência social e política, entendendo as desigualdades sociais brasileiras de raça, classe, gênero, sexualidade, geração, território e capacitistas. Do contrário corremos o risco de cair na perpetuação das violências através do nosso próprio fazer.

Análise Crítica
Compreendo que umas das coisas que perpassam esse “A culpa é de quem?” está na nossa compreensão branca, ocidental, euro-norteamericana de gênero. Partir de um sentido produzido de que mães são antes de tudo esposas que carregam a casa em torno de si mesmas (OYĚWÙMÍ, 2004), “tapa” nossos sentidos para perceber que essas mães são mulheres em multiplicidades com suas demandas, desejos, violações e resistências e que existem, ou tentam existir, também para além do cuidado com as crianças. Mas se o cuidar de uma criança requer tempo integral ao mesmo tempo que não é a única responsabilidade daquela mãe - e não é possível ser, a conta não vai fechar.
Além disso, direcionar culpa à mãe sobre a dieta de um filho desconsidera toda a discussão sobre segurança alimentar e suas iniquidades. Portanto, fazer a pergunta retórica de “a culpa é de quem?” para produzir esse sentimento é uma ação que reforça a matriz de dominação colonial (AKOTIRENE, 2018): reforça o racismo, o machismo e as demais formas de opressão.
Como feminista, ainda que branca, não me é estranho o culpar quem é atravessado pela violência, é uma discussão presente quando discutimos violências sexuais, por exemplo. Por isso trago aqui essa reflexão, para que repensemos nossas práticas, tirando a culpa delas. Pois, se for pra procurar culpados, os movimentos negros, movimentos feministas e de mulheres, movimentos LGBTQIAPN+ e demais movimentos sociais já apontaram: É a branquitude, o patriarcado, a cisgeneridade, a heteronormatividade, o capitalismo.