02/11/2023 - 08:30 - 10:00 COC16.2 - Desafios na atenção à gestação, ao parto e ao puerpério |
46580 - MORTE GESTACIONAL E NEONATAL: DESAFIOS CLASSIFICATÓRIOS NOS REGISTROS DE ÓBITO CELINA MOREIRA MESQUITA MERCIO FIGUEIRA - IESC/UFRJ, RACHEL AISENGART MENEZES - IESC/UFRJ
Apresentação/Introdução Na contemporaneidade, as perdas gestacionais e neonatais são categorizadas a partir de ideais presentes no discurso biomédico, concernentes à reprodução, família, relações de gênero e finitude. Entretanto, a descrição do fenômeno ultrapassa o desejo de filho e as comprovações corporais de experiências de gestação e parto. A lógica de registros de nascimento/óbito evidencia o valor da documentação médico-Estatal do estatuto de pessoa e cidadão, símbolo da homogeneidade social. Medida burocrática de saída da vida coletiva, as declarações de óbito lançam luz sobre a forma pela qual a medicina reconhece a (in)humanidade de conceptos/recém-nascidos e os falecimentos (im)passíveis de luto. A ausência de documentos na morte revoga trajetórias biográficas e projetos de família, ao passo que marca contrastes na sociedade civil.
Objetivos Delinear as normas atuais da conduta biomédica associadas aos registros de óbito; Desvelar moralidades e marcas de intenções em torno da reprodução feminina e seus produtos procriativos; Analisar os desdobramentos dos marcadores sociais das desigualdades na categorização das vidas humanas e estruturação de políticas de saúde.
Metodologia A abordagem etnográfica da publicação Declaração de óbito: manual de instruções para preenchimento (Ministério da Saúde, 2022), disponível em meio virtual e empregado em todo o território nacional na análise estatística da mortalidade, é um instrumento de reflexão sobre éticas seletivas, usos sociais do corpo e interseccionalidades na assistência à saúde maternoinfantil brasileira. A versão empregada na pesquisa é composta por 59 variáveis distribuídas em nove blocos, com destaque aos referentes à “identificação”, “residência”, “ocorrência”, “fetal ou menor de 1 ano” e “condições e causas de óbito”. A postura crítica dirigida a alcançar mentalidades é reveladora de valores presentes na qualificação médico-Estatal da reprodução e dos corpos femininos, bem como de conceptos/recém-nascidos e seus consequentes óbitos. Ao subverter as pretensões do documento, a leitura na ‘contracorrente’ considera juízos de valor associados ao manejo de responsabilidades frente às fatalidades e avaliações sobre a legitimidade dos projetos de família e estilos de vida. O enfoque nos desafios classificatórios dos registros civis propicia debates acerca dos vínculos biológicos e afetivos da maternidade, estruturados na medicalização do início e do fim da vida nas sociedades ocidentais contemporâneas.
Resultados e discussão Os códigos linguísticos e as qualificações médico-Estatais hierarquizam as vidas e contraditam as teorias jurídicas de semelhança entre os seres. Agrupados em esquemas, esses registros constroem e fortalecem estratégias de governo dos corpos. A apresentação dos óbitos por parâmetros mensuráveis e homogêneos contribui para uma negação coletiva de assimetrias, em sintonia com as inequidades na distribuição de recursos. O monitoramento biométrico dos corpos fetais e de recém-nascidos assinala a fragilidade e a fluidez das definições de humano e pessoa no universo simbólico e imaginário social. Situada na liminaridade dos pares de oposição vida/morte e sujeito/objeto, a demografia das mortes precoces ilustra determinado posicionamento da medicina, uma vez que se apoia na anatomopatologia. A noção de “eu” é biopolítica e estruturada na experiência clínica. As Ciências Humanas e Sociais traçam perspectivas críticas em torno do cruzamento biomédico com práticas sociais e burocráticas. A duração da vida é objeto de regulação social. O saber médico opera na direção de uma instrumentalização de bioidentidades, nos espectros político, econômico e ético de gestão do poder no século XXI. A valoração dos corpos femininos e do material reprodutivo reforça os propósitos civilizatórios. O inventário demográfico é voltado à produtividade social; a ética seletiva dos registros civis mede e aprimora as populações.
Conclusões/Considerações finais O capital simbólico da biomedicina deriva de valores e moralidades engendrados e transformados em estratégias de inserção na vida coletiva. A substituição da categoria “dignidade” por gramáticas teóricas e políticas estruturadas nos direitos humanos permite reflexões a serviço do desenvolvimento de políticas de saúde. Se o ângulo de apreciação biomédica sustenta relações de poder invisíveis e garante a assunção da medicina como neutra, objetiva e universal, a análise das interseccionalidades presentes nas declarações de óbito, por meio dos estudos de gênero, assinala inscritos e marginalizados, sem ignorar os grupos sociais aos quais pertencem. No fluxo do preenchimento dos registros vitais, os documentos apresentam a jurisdição da identidade de pessoa em termos performativos e compulsórios. A ausência de certidões ilumina hiatos no caráter universal de cidadania.
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