Comunicação Oral Curta

02/11/2023 - 08:30 - 10:00
COC14.1 - Mulheres e emergências sanitárias

46610 - CONTINUIDADES E RUPTURAS NAS TRAJETÓRIAS DE CUIDADORAS FAMILIARES DE CRIANÇAS ATINGIDAS PELA SÍNDROME CONGÊNITA DO ZIKA VIRUS
ANA PAULA LOPES DE MELO - UFPE-CAV, TEREZA MACIEL LYRA - IAM, FIOCRUZ/PE, THALIA VELHO BARRETO DE ARAÚJO - UFPE


Apresentação/Introdução
Entre 2015 e 2017 milhares crianças nasceram no Brasil com Síndrome Congênita do Zika (SCZ), doença caracterizada por um espectro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor. Essa emergência sanitária trouxe grande visibilidade para um problema inesperado com consequências graves para o desenvolvimento das crianças e que tem demandado modificações nos sistemas de saúde, em outras políticas sociais, e nas configurações familiares.
Mulheres foram sujeitos emblemáticos nesse processo. Seus corpos abrigavam a possibilidade de transmissão do vírus para os seus filhos, gerando sentimentos como culpa e medo. Além disso, padrões desiguais de gênero atribuem a elas o papel social do cuidado, demandando uma sobrecarga que acarreta mudanças nas suas trajetórias de vida imaginárias/desejadas ou reais para dar conta das exigências de cuidado que o lugar da maternidade socialmente lhes impõe. Tornaram-se também sujeitos políticos, porta-vozes de si, dos seus filhos e suas famílias denunciando realidades e desafios não apenas no âmbito da saúde, também em diversas dimensões da vida.

Objetivos
Analisar o impacto da epidemia de Síndrome Congênita do Zika para mulheres cuidadoras familiares, buscando identificar, nas suas trajetórias, as implicações dos (des)caminhos percorridos na busca por assistência à saúde desde a descoberta do diagnóstico de seus filhos.

Metodologia
Foi realizado um estudo exploratório analítico, de natureza qualitativa e quantitativa. Os dados aqui apresentados concentram-se nos resultados oriundos da etapa qualitativa do estudo na qual foram realizadas entrevistas com 23 mulheres, sendo 17 mães e 06 outras cuidadoras familiares de crianças diagnosticadas com a SCZ.
Tomamos como noções analíticas os conceitos de projeto (VELHO, 2003), aqui utilizado como “trajetória”; e “ruptura biográfica” (BURY, 1982). O primeiro como resultado de um projeto de vida, um caminho percorrido, não fixo, mas envolto em particularidades subjetivas e na inserção em uma certa configuração social (de geração, de gênero, de classe, econômicas, políticas, sociológicas, simbólicas etc.) que pode ser afetada pela interferência de diferentes dimensões. O segundo para fazer referência a como certos eventos emergem na vida dos indivíduos em um dado momento particular modificando sua forma de estar no mundo. Essa ideia tem sido bastante utilizada nos estudos sobre doenças crônicas para fazer referência à reorganização nas formas de vida e nos discursos narrativos decorrentes do adoecimento.

Resultados e discussão
Os resultados apontaram para impactos nos âmbitos sociais, econômicos, subjetivos e para a saúde que trouxeram repercussões para as trajetórias de vida das mulheres e implicaram em rupturas biográficas semelhantes àquelas experienciadas por adoecidos crônicos, embora não fossem elas mesmas aquelas que portavam o diagnóstico.
O cuidado das crianças repercutiu em pouco tempo para o cuidado de si e outras atividades sociais. No entanto, ser “mães de criança da Zika” criou uma identidade compartilhada que, para algumas delas, conduziram a um novo pertencimento social. A solidão inicial advinda da situação de ser vítima de uma “tragédia”, transformou-se ao vincularem-se a outras mães.
Os suportes sociais têm se configurado como uma rede de apoio e aliança solidária entre mulheres que compartilham experiências e constroem conhecimentos acerca da doença e reivindicam ações estatais concretas para contextos de vida no qual a ocorrência da síndrome evidenciou permanências de vulnerabilidades presentes nessas famílias ao longo de gerações. O que aponta para certas continuidades biográficas nas quais a SCZ é um problema dentre tantos em contextos de vida tão complexos.

Conclusões/Considerações finais
A eclosão da epidemia de Síndrome Congênita do Zika trouxe uma geração de pessoas (agora ainda crianças) que demandam uma série de cuidados permanentes em função de comprometimentos físicos, cognitivos e neurológicos ocasionados pela doença. Nessa configuração, as mulheres das famílias, dos seus lugares de vínculo efetivo-familiar desenvolvem também um trabalho, na maioria das vezes não percebido como tal, relacionado ao suporte e apoio para garantia do bem-estar desses pequenos.
Apesar do esforço público de alguns setores estatais para viabilizar respostas e tratamento adequado, há evidências de insuficiência, ausência, limitações e interrupções. As políticas voltadas para as crianças desconsideraram o trabalho de cuidado exercido pelas mulheres. Ao fazer isso, o Estado apropria-se do tempo dispensado ao trabalho de cuidados, desresponsabilizando-se e contando (mesmo que não explicitamente) com a certeza que será exercido por alguém, as mulheres, que, numa estrutura de estado que reproduz padrões patriarcais de organização são percebidas como naturalmente dispostas para tal.